hoje, noite mais fria de um ano absurdamente quente, já diante das panelas percebi ter acabado o alho, e esse simples acontecimento fez irromper a sua presença na cozinha onde você nunca pisou: você nunca deixou faltar alho, jamais deixaria faltar. sempre que me direciono às panelas é em você que eu penso, em você e na sua faca de cabo laranja — você dizia vermelho — e a imagem de um alho é o suficiente para ter a minha mente invadida não pela sua feição, mas pelo fantasma de suas mãos.
conheci as suas mãos quando já eram velhas, e tenho impresso na cabeça o seu formato, a pele ressecada pelo alvejante, a pequenez de suas unhas e a lembrança de seu aroma: um cheiro de alho que se impregnou perpetuamente e não havia o que ser feito, um cheiro que às vezes se misturava a um forte odor químico dos produtos de limpeza, da lavagem de roupas. era esse o aroma de suas mãos, que mesmo após camadas de óleos e hidratantes, mesmo confrontando todo o seu asseio e vaidade, jamais se eclipsou.
figueiras, mamoeiros, pés de acerola ou de romã também me indicam um caminho à memória de suas mãos. foi num quintal pequeno, uma curta extensão de terra à direita da casa, onde você inventou um mundo, afofou o chão como quem acaricia um bicho enfermo, alimentou a terra com casca de ovo, borra de café, a matéria orgânica de tudo o que se comia em casa, pra depois de um tempo poder se esbaldar na sazonalidade dos pomos. mas não era trabalho fácil. colhíamos os figos verdes para nos antecipar ao festim dos pássaros, limpávamos — na verdade, você limpava, eu ainda não tinha permissão para usar as ferramentas cortantes, eu ainda não tinha jeito com as mãos — cada um daqueles frutos, cheios de uma substância leitosa, para então você passar uma tarde encostada no fogão, manuseando uma imensa colher e sacos de açúcar cristalizado, se encarregando do preparo do doce que encantou a vizinhança.
enchia sacolas plásticas de acerola, o fruto que ascendia à terra nos dias de muita luz, e em sua pele e em suas roupas as estigmas avermelhadas dos frutos que te atingiam remontavam ao seu período da internação, reclusa do mundo, assombrada pela possibilidade de perder os dedos, de soltar-se de sua própria derme; colhia mamões estéreis, frutos imensos do maior dulçor, mas sem nenhuma semente, pois não queriam frequentar outros quintais que não o seu; distribuía as suculentas granadas entre os vizinhos supersticiosos, e usava como auxiliar alquímico um livro de capa verde para transformar folhas de guaco, poejo e hortelã do norte em antídoto contra todo tipo de mazela. mão boa para plantar, a gente ouvia.
não tenho recordação de como o papagaio chegou em casa, os seres peníferos apenas se multiplicavam por nosso lar sem nenhum vestígio de suas origens, mas eu me recordo de te encontrar na cozinha com o bicho ainda pelado, cheio de penugens verdes despontando pelo corpo enrugado, envolto num pano acolhido em seu colo enquanto você o alimentava com fubá cremoso dentro de uma seringa. decidiu batizá-lo zeca, andava com ele no ombro feito uma pirata doméstica que nunca entrou no mar, temerosa das águas. você acariciava a sua cabeça com o indicador em formato de gancho e ele retribuía às bicadas, o que devia ser também um tipo de carinho. da vez que o cachorro se acidentou, você curou sua ferida com suas próprias plantas, a destreza de suas mãos superava a do cirurgião veterinário, e hoje começo a desconfiar que talvez tivesse poderes mágicos que lhe escapavam às pontas dos dedos. todo gesto engendrado por você evocava algum tipo de magia.
existe um contínuo número de memórias de mãos atribuídas a você que eu já não sei se aconteceram ou se fazem parte de lembranças que eu mesma inventei para conciliar a sua imagem: você sentada no banquinho com um bacia entre as pernas cortando maços de couve na espessura de um milímetro, ou você descamando peixes que o vizinho trouxe, tirando-lhes as tripas, uma chuva de partículas furtacor e respingos de sangue que se revelava aos seus pés. também houveram todas as vezes em que um pedaço de cana-de-açúcar surgiu misteriosamente em casa, nunca soube quem os trazia, mas me lembro de você cortando a cana em pequeninas porções para nós – e essa memória, eu sei, é verdadeira, pois a sensação dos fiapos contra a língua é algo de que não me esqueço.
eu não sou boa cerzindo rasgos de camisas como você era, mas lavo as minhas roupas na mão, assim como você me ensinou, e recentemente até me arrisquei no tricô. o seu zelo com as roupas talvez me tenha sido transferido, mas a agilidade com o ferro de passar eu não consigo desenvolver. roupas do linho mais teimoso sem nenhum vinco, paletós e vestidinhos sempre impecáveis, afinal, nunca me deixou desarrumada por aí, e por isso dedicava seu tempo a me trançar os cabelos em tranças grossas, extensas e brilhantes como a crina de um cavalo premiado. meus cabelos nunca mais tiveram o mesmo brilho, a vida parecia mais sadia diante dos seus cuidados.
***
foi antes da doença quando comecei a te observar como uma pessoa que continha, também, algum tipo de fragilidade: já não te deixava subir banquetas e escadinhas para realizar as atividades domésticas ou cuidar dos pássaros. te acompanhava na caminhada até a igreja, suas mãos acumulavam dores de todo o tipo, e não sei se foi efeito do meu próprio crescimento, mas cada vez mais te sentia perdida em meio aos meus braços, num efeito de esmaecimento da sua própria massa corpórea.
depois da doença, os vestígios de fragilidade se tornaram insuspeitos: eu senti muito medo do seu corpo, um corpinho mirrado, padecer em minhas mãos. um corpinho que se comprimia com o passar dos dias como se anunciasse a sua despedida, se dissipando, transformando-se em carcaça enquanto a própria vida ainda se impunha sobre ti.
você me contava a respeito dos caixõezinhos de criança, e eu assistia atenta à forma como me indicava com as mãos a dimensão dessas pequenas caixas: o quão pequeno devia ter sido o caixão de laura, sua gêmea morta aos seis meses de idade; o caixão de todas as crianças que viu morrer na barra velha antes da inundação de furnas; os caixões que você não viu, mas imaginou para cada uma das crianças vítimas de crimes no noticiário das seis da tarde. crianças que são ornamentadas como anjos e descansam com as mãozinhas repousadas no peito, um sono pleno em berço eterno, pois já chegaram ao céu, o destino comum a todas as crianças mortas, que nunca tiveram um pensamento impuro e, por isso, você me dizia, merecem o reino de deus.
quando torno à casa e abraço a sua filha a percebo também pequena, miúda, como se um abraço conseguisse conter o lembrete de que um dia talvez seja ela a dona de um corpo frágil, caído na cozinha ou no banheiro, aguardando ser socorrido por alguém – essa imagem me assombra.
***
depois de tantos anos repetindo os padrões, achei que suas mãos jamais se esqueceriam, mas um dia, elas desaprenderam a tricotar, um afago ou um aceno era substituído pelo gesto de um tapa, e mesmo segurar um copo foi uma memória motora que se dissipou. agora você era o recém-nascido, gesticulando para o ar, tocando superfícies sem saber direito o que fazer ou como fazer, cada vez menor em seu próprio corpo, do tamanho de uma caixinha que eu quis manter na palma de minhas mãos.
escrevi esse texto a partir de uma antiga entrada de diário, que ganhou muito mais camadas através do meu enlutamento, e também a partir da releitura desse poema da poeta escocesa liz lochhead, que uma amiga muito querida e também poeta, stephanie fernandes, me apresentou alguns anos atrás. fiz uma breve tradução do poema para mostrar para minha irmã e a deixo aqui:
Para o tricotar de minha avó
Não precisa eles dizem
Mas as agulhas ainda se movem
no compasso do trabalho de suas mãos
naturalmente
como se suas mãos
fossem de novo as mãos ágeis e seguras
da menina-pescadora.
Agora você está velha
e sua percepção das coisas não é tão boa
mas senhora de seus momentos então
ágil e veloz
você cortou o peixe que ainda se debatia.
Trabalho duro também
era uma necessidade.
Mas agora eles dizem que não precisa
conforme as agulhas se movem
na destreza de suas mãos
outrora mãos da noiva
com a cintura de um palmo
outrora mãos da esposa do mineiro
que esfregava suas costas
numa banheira de alumínio perto do fogo
outrora mãos da mãe
de seis que costurava e remendava
ralava, labutava e esbofeteava
quando necessário.
Mas agora eles dizem que não precisa
os netos dizem vovó,
já tenho um monte
mais do que eu consigo usar
tantos cachecóis e agasalhos –
vovó, você já fez muito
não tem necessidade…
Da sua janela você acena
a eles o seu adeus dominical.
Com suas mãos doloridas,
grandes para os pulsos encolhidos.
Juntas inchadas. Vermelhas. Artríticas. Velhas.
Mas as agulhas ainda se movem
no compasso do trabalho de suas mãos
naturalmente
como se suas mãos lembrassem
por si mesmas do padrão
como se suas mãos tivessem esquecido
como parar.
aninha, que lindo :~ lembro tanto de ter lido a parte dos caixõezinhos faz tempo no seu twitter! tem algo tão bonito no texto se desdobrando com o tempo, assim como o luto... enfim, bonito, bonito demais.
amiga, lindo ler de onde você veio! essa partezinha aqui mexeu muito comigo:
"existe um contínuo número de memórias de mãos atribuídas a você que eu já não sei se aconteceram ou se fazem parte de lembranças que eu mesma inventei para conciliar a sua imagem:"