há um abismo entre poder morar e apenas morar, poder escolher uma cidade, um bairro, a casa que melhor se adequa a você, a casa que você quer, entre a condição de morar, precisar morar ou só ter nascido e se criado ali, naquele lugar que chamamos por casa. lembro de, numa entrevista, ver o arquiteto paulo mendes da rocha dizendo algo como o seu endereço ser aquilo que faz o outro te ver com bons olhos ou te enquadrar numa classificação social, pois indifere como é a sua casa se o endereço não for um endereço de prestígio — ou foi esse o mosaico de falas que fiz em minha mente. ele dizia também que ninguém pede uma descrição de sua casa, não se diz onde mora contando das qualidades daquela moradia, mas sim dando o seu endereço. por muito tempo, ainda adolescente, eu tive vergonha disso tudo: casa, endereço.
quando criança, sair do bairro era também topar com lugares que não eram como aquele em que eu estava me criando e sentir minha existência soçobrando diante de um mundo que ia muito além do que eu imaginava existir. lugares que se compunham por uma nova topografia, prédios enfileirando-se em ruas longas, tantos terrenos extensos, onde cabiam seis, sete casas, e ainda assim comportavam apenas uma; casas novas e reluzentes, ou ainda casas velhas, reluzentes, casas velhas e grandiosas com jardim na entrada, piscina no fundo, dois carros na garagem e um cachorro igual aos da tevê latindo como um alarme que dispara a qualquer movimento, ou também um muro alto com a pintura em dia, radiante, uma profusão de plantas se derramando, e um portão que é aquilo que se pretende de um portão: uma barreira metálica que vela a casa e impede os outros de entrar, sem vizinhos que a atravessam sem se anunciar, sem as calcinhas e as camisas, expostas, quarando ao sol no quintal da frente, sem uma mercearia com caderneta de devedores e os meninos da boca que zelam pela casa de sua avó e pedem bênção a ela sempre que passam, sem os santos compondo jardins que adornam janelas que emolduram as cozinhas — os meninos da boca e os santos nos protegiam mais do que os portões.
passar a frequentar pessoas de outros bairros surtiu em mim um efeito doloroso de inadequação. quando questionada a respeito de onde eu morava eu respondia de forma incerta e com floreios, usava referências como as avenidas famosas e o shopping center, artifícios para minimizar aquele lugar que aos poucos passou a me envergonhar. uma vergonha que eu senti por me dar conta de que, não importa o que pudesse ser feito, eu era uma intrusa e restava a mim contar com a boa vontade dos outros em se aproximar, a despeito de origem ou natureza econômica.
daí que um dia você passa a aceitar essa condição e começa a pensar formas de habitar os lugares de que você sempre desejou distância: esse bairro, essa cidade. aproximar-se deles é a única opção que lhe resta, e então você dedica seus dias a matar aulas, não por encontros amorosos ou pelo desejo de disrupção adolescente, mas sim para conhecer as linhas de ônibus e perambular memorizando os lugares, as ruas, os nomes com que foram batizadas — nessa aqui os carros sobem, nessa eles descem, essa outra é de mão dupla e o sinal dura só oito segundos. que bonito é o prédio da prefeitura, a escola carlos gomes, esse sebo num casarão antigo e essa casa azul que está à venda há dois anos. e às vezes me perdia, fazia um grande esforço mental para recordar o caminho — e era tudo bem se perder, pegar o ônibus errado, adentrar vias suspeitas, pois é daí que crescia a conciliação com a cidade: do medo de não saber mais tornar a casa e passar a compor as suas ruas, conhecer outros tipos de violência, conhecer as operações de seu âmago pr’além da vida no bairro. não se conhece uma cidade sem antes conhecer aquilo que compõe sua intimidade.
a vida no bairro também ganhou nuances mais gentis: você passa a se ver como parte indissolúvel daquele todo, a vida de cada uma das senhorinhas é também a sua vida e suas histórias são as histórias de todas as mulheres que você conheceu ou vai conhecer; elogiar os seus jardins, passar pelas ruas e identificar o latido de cada um dos cães, chamá-los por seus nomes, mapear as árvores que obstruem passagens, reparar nos mamoeiros que despontam no topo das casas, deixar ser apelidada pelos meninos do bairro e ver graça no balé de suas motocicletas e no grito rouco e enfumaçado dos escapamentos; passar a sentir amor pelo cimento vermelho que reveste o chão de casa e mancha os pés com o descascar da cera, sentir amor pelas camadas de tinta que se acumulam em suas paredes, a oxidação dos metais, o aspecto lodoso do quintal, revelando a imposição da natureza e do tempo, implacáveis.
onde escolhi morar já não tem muito das coisas dessa ordem. não tem quintal, por exemplo, e as configurações e as dimensões são outras. tenho muito claro num quadro mental: quatro casas de cada lado da rua, casas que se espelham em suas plantas, uma rua à esquerda, outra no meio, uma à direita e a pracinha em frente, com a rodovia lá na beira onde o sol nasce quando se olha por cima do muro, e o apito de maria-fumaça como um som distante mas que atinge os limites do bairro, enquanto aqui, vivemos diante da incerteza da existência de horizonte e de sons isolados. onde escolhi morar também é uma rua curta, bastante curta para as dimensões da cidade — diz-se que é a menor das avenidas, a mais curtinha do país —, mas numa estrutura de boulevard, um canteiro que corta toda a sua extensão, e o tanto de prédio e gente faz com que essas dimensões se pareçam colossais perto do bairro velho na outra cidade. de todas as senhorinhas que aqui habitam só conheci três: dona luiza, sirlene e ivanilde, e também alguns porteiros e seguranças, os meninos da gangue da bicicleta que me levantam as sobrancelhas num tom conciliador, as prostitutas que ficam na praça e me sorriem quando passeio o cão, o moço do carro de lanches, também o do carrinho de bebidas, os taxistas que conheci por nome: marino, ricardo, walter, pedrinho. todos sempre cientes de seu entorno, num eterno conhecer só de vista, cada um cumprindo o seu papel na composição de uma paisagem.
da história do bairro velho eu sempre soube que tudo aquilo veio da ditadura, que trouxe consigo o nome de militares batizando as ruas e o dia do golpe batizando o bairro. minha mãe contou que antes de ser bairro propriamente era tudo plantação de algodão e café que se perdia de vista, mantendo as pradarias que batizaram a cidade como um dado oculto. o que delimitava a casa como propriedade não eram os muros, mas as cercas de madeira, e das ruas, ainda sem asfalto, carros e charretes subiam poeira pintando de sépia o branco das moradas, o mesmo tom de sépia dos descampados – ou batidão de terra, como chamavam – que recebiam o circo, o rodeio e todos os meninos que alçavam aos céus balões de tamanhos descomunais. a paróquia local, porém, só ganhou forma no final dos setenta, antes disso era na escola onde se rezavam as missas, onde a comunidade se reunia em volta de uma cruz – mas ela está lá até hoje, muito bem cuidada, décadas de zeladoria de seu roque que, enquanto viveu, fez de tudo por essa igreja.
às vezes os bairros e as ruas são construídos pelo governo, suas casas entregues àqueles que fizeram um cadastro e pagam uma quantia mensal, mas também costumam surgir assim: pregam na terra uma cruz onde alguém morreu ou se acidentou: estabelece-se um culto em torno daquela cruz: depois é construída uma capela para envolvê-la. essa história, que é a história de tantas capelas, ruas, bairros e cidades, é também a história da rua onde eu escolhi morar e de uma capela que desde a primeira década do século xx já não existe mais: rua do pocinho, ou santa cruz do pocinho, atual vieira de carvalho. da história da capela, da rua e de seu nome, diz-se que tudo começou quando a rua apenas era um recanto caipira e a cidade se configurava pelas fazendas de chá; um poceiro, encarregado de limpar o poço, tirar a água, abastecer a vizinhança etc. se acidentou e não conseguiram tirar seu corpo de dentro do poço, e logo surgiu uma comoção popular velando o local. a vida nas cidades se estabelece assim, com um amontoado de tragédias cotidianas – sua história se funda através delas, às vezes nas entrelinhas, às vezes sequer citadas, mas são os fantasmas que formam as cidades.
o poço foi coberto, uma cruz foi fincada, uma capela erguida e assim se formou uma rua, a rua da capela do pocinho, capela da santa cruz, ou santa cruz do pocinho, na região em que, anualmente, celebrava-se no dia 3 de maio a festa da santa cruz.
do mesmo jeito que o batidão de terra do bairro onde eu cresci deu origem à pracinha em que brinquei quase todos os dias, esse descampado foi o que se transformou na praça da república durante a urbanização da cidade – o cão centralizado nesse lugar tão imenso me faz pensar em todos os cães que conheci no bairro e suas patas alaranjadas como botinhas revestidas de terra, desbravadores de matagais e córregos. a casa mais discreta, no canto esquerdo, é a casa que mais tarde seria destruída para o alargamento da avenida, a partir de um desejo de seguir os projetos europeus de urbanização. às vezes penso nas correspondências dessa fotografia com a configuração atual: o terreno ao lado da casa que foi destruída certamente corresponde à esquina em que hoje os meninos da gangue da bicicleta me lançam olhares, e a casa suntuosa ao centro é onde fica a loja de cacarecos e seus balões metalizados que anunciam as temporadas – carnaval, páscoa, natal, sempre escritos em letras garrafais flutuando na fachada.
uma vez li em algum lugar que o poço ficava mais ou menos na metade esquerda da rua, se você vem da praça da república em direção ao arouche; penso então no quarteirão que hoje abriga os bares, tento criar uma reconfiguração fiel àquilo que foi um dia, num esforço de enxergar o antes; daí que me lembro como entre a aurora e a vieira fica tudo empoçado quando chove, um pequeno lago que se forma na travessia das ruas, o fantasma do poço dizendo que sim, ainda está ali, afinal, é nessa rua onde ele mora.
. escrevi esse texto a partir de uma thread que postei em meu perfil no tuiter alguns anos atrás: você pode acessá-la clicando aqui
. a revisão e edição é de renato rodrigues