“Vai fazer uma década que meu pai morreu. Eu ainda uso as roupas que herdei dele: camisas, calças, ternos, de vez em quando gravata. Um par de sapatos pretos, sóbrios, que ele usava para trabalhar e eu, quando tinha que ir a um casamento ou enterro. Agora trabalho cada vez mais de sapatos. Passei a usar cada vez mais os sapatos do meu pai. Como duravam, as coisas de recém-antigamente.
Só agora o couro começou a afrouxar, as solas descolaram, dez anos depois da morte de seu dono original, a milhares de quilômetros de onde está enterrado. Aqui em São Paulo desértica, cheia de sapatos sem homens dentro.
Como duravam, as coisas.”
- Victor Heringer, 2014
Depois de algum tempo eu decidi não manter o casaco de inverno e os sapatos que me foram destinados após a sua morte. Encarando-os no armário, senti medo de que algum dia um cenário onírico tomasse contornos reais e, através de um sopro, suas roupas ganhassem o poder de me fazer acessar uma jovem Irina, cuja quimera eu não conseguiria olhar de frente e para quem eu não conseguiria contar dos infortúnios que ocorreram na vida de seus filhos, da solidão que se instaurou em sua casa, da paróquia que, por orgulho e ressentimento, você nunca mais frequentou, e das roupas de repouso que você passou a usar pelo resto da vida, alheia a uma juventude envolta em revistas de modelagem, costurando para si as peças da moda. Sobretudo, senti medo de você poder acessar a minha própria vida através daquelas roupas que agora repousavam em meu armário, e ver na minha condição de mulher jovem algo que lhe causasse pena ou desconforto. A memória de um fantasma precisa ser respeitada.
Quando você me visita em pensamento, sua imagem é acompanhada também da imagem de uma composição sartorial: você veste uma camisa de mangas curtas em tons de rosa, preto e branco, com motivo floral, uma bermuda de cor clara, talvez ocre ou bege, e sandálias de couro marrom escuro. Essa imagem, no entanto, como uma matriosca, se insere dentro de uma outra imagem, que é o próprio espaço de sua casa, vista por um película marrom dos anos oitenta: o sofá de couro, a estante de mogno acolhendo uma televisão de tubo, porta-retratos e cacarecos de toda ordem, o conjunto de pratos Duralex, as esquadrias das portas e das janelas, se me lembro bem, de cor vinho, as lajotas revestindo o chão de cor terracota. Tudo isso é o que acompanha a lembrança de seu rosto. A armação dos óculos transparentes, os metais combinando com as cerejas maduras que ornamentam a mesa de Natal, sua pele escura em contraste com os cabelos brancos; um quadro que se compõe sempre que penso em seu nome, um quadro que se formou naquela manhã em que me retirei da sala de aula para chorar a sua morte trancada no banheiro e conformar em minha memória um panorama que me dissesse: esta é Irina, preserve-a assim. Pensar a sua imagem para poder sofrer um luto foi compor esse quadro, que diz respeito apenas a você.
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Gosto de pensar que a noção de invólucro corporal, embora eu tenha aprendido que compreenda a roupa exterior – vestidos, capas, paletós, casacos –, a roupa interior – calcinhas, calçolas, ceroulas, sutiãs, corsets – e também, a depender do que está posto em questão, o gesto engendrado por essas roupas – o espírito –, abrange ainda uma quarta camada, que é exatamente o espaço em que um corpo se insere – geralmente o espaço arquitetônico, o abrigo, a casa, o espaço por onde o corpo vestido se move e faz a roupa ganhar sentido. O corpo vestido nunca é indiferente a uma paisagem, a roupa só ganha sentido diante desse quadro completo, quando está inserida num panorama.
Recentemente, revendo um filme que vi durante a infância, deparei com um cenário que entendia o invólucro corporal exatamente como esse todo que compreende roupa, espírito, espaço. No filme, um casal, morto num acidente de carro, continua a habitar a mesma casa, vestir as mesmas roupas do momento da morte e ainda mantém os mesmos hábitos e vontades. Aos poucos, esse casal aprende como um fantasma deve se comportar e como um fantasma, ainda se acostumando com a ideia de estar morto, pode se divertir com a possibilidade de se tornar assombração. Mas foi uma cena do filme que deteve toda a minha atenção: os novos moradores da casa, cientes de sua condição de casa mal-assombrada, tentam invocar os fantasmas do casal através de um ritual encontrado num livro, que deve ser feita por meio das peças de roupa daqueles que morreram. Antes aplainadas em cabides, indiferentes à própria volumetria, detinham em si a possibilidade de dar vida a um corpo; agora, dispostas nessa mesa ritualística, cumprem seu destino, o próprio vestir, e são lentamente preenchidas como que por um sopro da vida daqueles que já se foram, ganhando as formas de seus corpos, dando ao fantasma uma noção de espacialidade através da própria roupa.
“On the dress she has a body.” Foi o que li enquanto fazia buscas no catálogo do arquivo de Gilda de Mello e Souza no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. A ficha do catálogo diz que, num caderninho, ela tomou essa nota durante uma leitura sobre a artista Sonia Delaunay. A ideia de ganhar um corpo através de algo que se veste perdurou em meu pensamento. Mais tarde, descobri que essa nota se refere a um poema escrito por Blaise Cendrars, em homenagem à própria Sonia e a uma de suas criações, o Simultaneous Dress, um vestido que a artista confeccionou com base em princípios de sua própria pintura, utilizando retalhos para construir formas e volumes, a fim de vesti-lo em eventos de arte e divulgar seu trabalho por meio da própria imagem. Quando eu penso em Sonia Delaunay, não tenho delineado um rosto, mas a lembrança dessas fotografias onde há uma profusão de formas vestíveis, elementos gráficos que saltam aos olhos. Quando penso em Sonia Delaunay, penso antes em seu corpo vestido com suas próprias criações, em seu corpo posando em meio aos seus quadros, num ambiente cuja formação, àquele tempo, não poderia pertencer a mais ninguém que não ela.
A primeira vez que entendi algo da noção de um rastro de individualidade no vestir, tenho certeza, foi através de uma série fotográfica de August Sander. Mais tarde soube, por meio de um comentário do costureiro Yohji Yamamoto, que essa série também foi importante para ele, e uma fotografia específica chamou a sua atenção: a imagem de um cigano posando com a mão em um dos bolsos das calças de cintura alta, vestindo camisa sem gola com dois botões desabotoados e um paletó que poderia parecer grande para o seu corpo, mas que, exatamente pelo excesso de seu uso, por estar puído, agora parece fazer parte da pessoa fotografada. Para Yamamoto, é exatamente na passagem do tempo que uma roupa se torna algo único, adequa-se à postura e à forma daquele que a veste, torna-se parte dele. Que uma roupa se acomode a você, que uma roupa faça alguém pensar em você, ou que reconheçam você em uma silhueta: isso, para mim, é a verdadeira noção de estilo, algo capaz de capturar atemporalidade e espírito.
Afeiçoar-se a uma peça de roupa, escolhê-la para si, só pode mesmo ser algo da ordem anímica. Uma jovem mulher vai às aulas do liceu usando um par de sapatos de lamê dourado, “sapatos de noite enfeitados com pequenos desenhos de strass”, é o que ela diz, assim como diz que calça os sapatos por vontade própria, que agora só suporta a própria imagem através daquele par, que eclipsou todos os pares que já tivera, os pares que antes conferiam aos sapatos a qualidade das brincadeiras infantis e, por isso, eram baixos, de lona. Essa mulher é a jovem Marguerite Duras em O amante, que, segundo a descrição do livro, usava um vestido de seda puída e amarelada herdado do armário de sua mãe, mãe cujas escolhas do que vestir seguiam todas um único critério: se a peça estava em liquidação. Assim como adquiriu os sapatos em liquidação, também adquiriu um chapéu masculino, um chapéu que a mudou completamente, exatamente por exaltar seu corpo franzino, por se contrapor ao brilho e à graça dos sapatos dourados de lamê. Mas agora, diz ela, esta se tornava uma escolha do espírito: “Pego o chapéu, não me separo mais dele, eu o tenho, tenho esse chapéu que me faz sentir inteira com ele, não o deixo mais”.
Penso nos motivos que me fazem escolher uma roupa, e penso nos motivos que fizeram a ensaísta e poeta Anne Boyer escolher um vestido de seda cinza e bolinhas num bazar do Exército da Salvação, cena descrita no livro Garments Against Women. Seu critério, penso bem, foi a capacidade de ver naquela roupa o zelo que sua costureira empregou ao confeccioná-la, descrevendo a etiqueta que fez com seu nome – “sewed by Louise Jones” –, a costura francesa que utilizou para dar acabamento à peça, o cheiro de loção e o cheiro de corpo impregnados no tecido, que evocam a ela o fantasma da própria costureira, o fantasma de Louise Jones. Também Anne Boyer é uma costureira e entende como ninguém a capacidade de colocar uma roupa no mundo através de um trabalho que é árduo, e entende também o estranhamento de transformar algo bidimensional, algo da ordem da modelagem plana, numa coisa que é capaz de comportar um corpo, de vestir alguém. Boyer diz que Louise Jones sabe das coisas inerentes às roupas, mas as pessoas que não costuram não o sabem.
As costureiras são capazes de dar corporalidade aos espíritos. Em seu livro Frantumaglia, Elena Ferrante conta do ofício da mãe, costureira, para falar do universo das roupas e dos cosméticos. Conta da compra dos tecidos e de como assistia com atenção ao jogo entre a mãe e os vendedores, de como eles cortavam os tecidos dispondo-os nas mesas de corte – para ela, era ali que começava a mágica da confecção –, dos tecidos que se acumulavam no balcão como os ingredientes necessários para realizar um feitiço e de como, ao trazê-los para casa, sua mãe marcaria cada um deles com giz e os cortaria, cobrindo o chão de retalhos, para então, com as ferramentas da costura, realizar a sua mágica: “Minha mãe, com alfinetes, agulha e linha, daria forma ao tecido, a forma precisa de um corpo, ela era capaz de fazer corpos de tecido”.
Ferrante conta também de como os vestidos já finalizados, dispostos cuidadosamente sobre a cama dos pais, faziam com que ela sentisse naquelas peças a possibilidade de uma presença fantasmagórica, e que certo dia, assim como no sopro da cena do filme que descrevi anteriormente, ela foi escondida observar uma das peças estendidas com esmero pela mãe e viu a roupa se preencher com uma respiração, um vento, para então descobrir por debaixo da peça a visagem de uma mulher morta.
“Sempre ouvi que as roupas não são vazias e que, no máximo, são os seres humanos que às vezes ficam vazios em um canto, desoladamente perdidos. Vesti as roupas da minha mãe durante a infância. Eu encontrava lá dentro mulheres lindas e de grande prestígio, mas mortas. Então eu entrava nelas, vestia-as com esmero e dava vida às suas aventuras. Todas tinham o cheiro da minha mãe, e eu também imaginava tê-lo. Não tinham marido, mas sim muitos amantes. Eu sentia intensamente seus prazeres, seus corpos aventurosos dissolviam o meu. Assim que eu sentia o tecido sobre o peito, sobre as pernas, ele aquecia minha barriga, minha fantasia. Eram tecidos que eu conhecia bem, haviam ficado por muito tempo nas mãos da minha mãe, entre seus dedos, sobre suas pernas.”
Elena Ferrante em Frantumaglia
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Minha mãe sempre trabalhou em meio às roupas, passou a maior parte da minha infância e pré-adolescência indo de segunda a sábado ao mesmo endereço, uma butique chique no bairro rico da cidade, para vestir mulheres ricas que estavam sempre em busca de novidades sartoriais. Eu não a via saindo de casa, mas me animava e me enchia de energia quando, na hora do jantar, ouvia o som que seu salto fino produzia na calçada a cada passo que dava em direção ao portão. Era ela, a mulher mais elegante que eu já vi. Hoje, minha mãe pode ter mudado seu modo de se vestir, sua aparência, mas a imagem dela que se perpetua em meu pensamento é a imagem de uma mulher esguia calçando escarpins, saia preta, camisa e um blazer. Eu me lembro do cheiro das meias-calças, eu me lembro do cheiro de couro de sua bolsa, da forma como penteava o cabelo num coque alto e de como, ao primeiro sinal dos fios brancos pedia ajuda a nós, suas filhas, para pintar o cabelo aos finais de semana.
Que sempre tenhamos andado tão arrumadinhas, com os esforços financeiros que tinha de fazer, é para mim um milagre. Lembro-me do bolero de um tecido suave, com fios dourados formando flores, que pediu para a Maria costurar para eu usar no casamento do tio, assim como me lembro da roupa que trouxe da loja para a vó, dizendo que veio de Nova Iorque – e sim, todo aquele brilho de bronze em tecido bordado só poderia ter vindo de um lugar que, para mim, soava alienígena.
Durante a maior parte do tempo, quem fez as roupas sob medida, realizou reparos, barras de calça e qualquer coisa da ordem das costuras tinha sido a Maria, a costureira da loja. Ir à costureira do bairro foi uma grande novidade para mim, eu não sabia que aquela portinha tão próxima à nossa casa comportava um mundo. Foi impactante ver aquela mulher grande em meio a uma infinidade de pilhas de roupas, montanhas de retalhos, o próprio som da máquina, tão estridente, e a luz amarelada em contraste com a luz branca guiando a costura. Era diferente do cenário em que a Maria trabalhava, um cenário mais asséptico, apesar de escondido no estoque da loja. Em algum momento minha mãe perguntou à costureira do bairro se ela se lembrava de mim, ela comentou com espanto como eu havia crescido, que eu não tinha nenhuma semelhança com o bebê tão frágil a quem ela deu de mamar. Minha mãe me explicou a forma violenta com que seu corpo recebeu a gravidez, como ficou em repouso durante todos os nove meses, como seu corpo, antes forte, enfraqueceu, e que por isso recorreu à costureira, à época com muito leite, para que eu pudesse ser amamentada, como quem tentasse me dizer “ela também te manteve viva, ela também te deu uma forma e um corpo”, o que eu sei, é o ofício das costureiras: dar ao outro uma forma, um corpo, fazer o outro existir no mundo.
Family Relics, de Alice Keelhoff
voltando aqui porque fico muito intrigada com seu texto. penso no atelierzinho que tens em casa e os croquis que já me mostrou, nossa ida à 25, tudo se conecta. muito lindo! <3
lindo lindo lindo